Por uns termos em si tão concertados,
Paradoxalmente Camões...
I
Eu cantarei de amor tão docemente,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que o Amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia, e pena ausente.
Também, senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho e arte.
II
Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa juntamente choro e rio,
O mundo todo abarco, e nada aperto.
É tudo quanto sinto um desconserto:
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio;
Agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao céu voando;
Num’hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar um’hora.
Se me perguntam alguém por que assim ando
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha senhora.
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois com ele tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma,
Está no pensamento como ideia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.
IV
Busque Amor novas artes, novo engenho
Para matar-me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar-me as esperanças,
Pois mal me tirara o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Pois não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, conquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.
Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei o porquê.
V
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente,
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer- te,
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder- te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver- te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
VI
Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia.
Os dias na esperança de um só dia
Passava, contentando- se com vê- La;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu a lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecido,
Começou a servir outros sete anos,
Dizendo: “Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida.”
VII
Depois de tantos dias malgastados,
Depois de tantas noites maldormidas,
Depois de tantas lágrimas vertidas,
Tantos suspiros vãos vãmente dados,
Como não sois vós já desenganados,
Desejos, que de cousas esquecidas
Quereis remediar mortais feridas
Que Amor fez sem remédio, o Tempo, os Fados?
Se não tivéreis já longa experiência
Das sem- razões do Amor a quem servistes,
Fraqueza fora em vós a resistência;
Mas pois por vosso mal seus males vistes,
Que o tempo não curou, nem larga ausência,
Qual bem dele esperais, desejos tristes?
VIII
Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É um não contentar- se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É um estar- se preso por vontade;
É servir a quem vence o vencedor;
É um ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causa pode o seu favor
Nos mortais corações conformidade,
Sendo a si tão contrário o mesmo Amor?
XIX
Vós, que de olhos suaves e serenos,
Com justa causa a vida cativais,
E que outros cuidados condenai
Por indevidos, baixos e pequenos;
Se de Amor os domésticos venenos
Nunca provastes, quero que saibais
Que é tanto mais o amor depois que amais,
Quanto são mais as causas de ser menos.
E não cuide ninguém que algum defeito,
Quando na cousa amada se apresenta,
Possa diminuir o amor perfeito:
Antes o dobra mais; e se atormenta,
Pouco a pouco o desculpa o brando peito,
Que amor com seus contrários se acrescenta.
X
De amor escrevo, de amor trato e vivo;
De amor me nasce amar sem ser amado;
De tudo se descuida o meu cuidado,
Quando não seja ser de amor cativo;
De amor que a lugar alto voe altivo,
E funde a glória sua em ser ousado;
Que se veja melhor purificado
No imenso resplendor de um raio esquivo.
Mas ai que tanto amor só pena alcança!
Mais constante ela, e ele mais constante,
De seu triunfo cada qual só trata.
Nada, enfim, me aproveita; que a esperança,
Se anima alguma vez a um triste amante,
Ao perto vivifica, ao longe mata.
XI
Um firme coração posto em ventura;
Um desejar honesto, que se enjeite
De vossa condição, sem que respeite
A meu tão puro amor, a fé tão pura;
Um ver-vos de piedade e de brandura
Sempre inimiga, faz-me que suspeite
Se alguma hircana* fera vos deu leite,
Ou se nascestes de uma pedra dura.
Ando buscando causa, que desculpe
Crueza tão estranha; porém quanto
Nisso trabalho mais, mais mal me trata.
De onde vem, que não há quem nos não culpe;
A vós, porque matais quem vos quer tanto,
A mim, por querer tanto a quem me mata.
XII
Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel, ou rigoroso.
Amor é brando, é doce e é piedoso:
Quem o contrário diz não seja crido,
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens, e inda aos deuses, odioso.
Se males faz Amor, em mim se vêem;
Em mim mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quis mostra quanto podia.
Mas todas as suas iras são de amor;
Todos estes seus males são um bem
Que eu por outro bem não trocaria.
XIII
Formoso Tejo meu, quão diferente
Te vejo e vi, me vês agora e viste, Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a mim contente.
A ti foi- te trocando a grossa enchente
A quem teu largo campo não resiste,
A mim trocou- me a vista em que consiste
Meu viver contente ou descontente.
Já que somos no mal participantes
Sejamo- lo no bem, ah, quem me dera
Que fôssemos em tudo semelhantes.
Lá virá então a fresca primavera,
Tu tornarás a ser quem eras d’ antes,
Eu não sei se serei quem d’ antes era.*
Curiosidade:
Um paradoxo é uma declaração aparentemente verdadeira que leva a uma contradição lógica, ou a uma situação que contradiz a intuição comum. Em termos simples, um paradoxo é "o oposto do que alguém pensa ser a verdade".